Em setembro do 2017, num extenso plano de asfalto a 30 milhas ao norte de São Diego, a empresa AES Energy Storage conectou um conjunto de baterias de íon-litio, o maior do mundo até aquele momento.
Organizado em fileiras de caixas brancas industriais sem aberturas, o sistema de armazenamento de energia (ESS, da sigla em inglês), como chamam esse tipo de conjunto na linguagem da indústria, não parece grande coisa aos olhos de um leigo. Para as concessionárias locais de eletricidade, contudo, foi algo como a salvação. Em finais de 2015, uma enorme fuga de metano ocorreu nas instalações vizinhas de armazenamento de gás natural em Aliso Canyon, interrompendo uma linha essencial de abastecimento e afetando a capacidade de produção de energia da região. O encerramento obrigou as empresas a emitir uma alertar sobre a possibilidade de interrupção do fornecimento de energia eletrica – o resultado quando a procura de eletricidade excede a capacidade de fornecimento da empresa. Nenhuma das soluções usuais fazia sentido. Construir uma usina a gás ou carvão para substituir a geração de energia perdida levaria anos; a energia solar e a eólica dependem do clima e não podem ser acionadas de um momento para o outro durante o pico de demanda de energia.
Em lugar disso, as empresas optaram por uma nova estratégia: aumentar sua capacidade para enfrentar a carga mantendo uma reserva de energia excedente em grandes baterias recarregáveis, prontas para ser ativadas a qualquer momento. Incluindo as baterias AES, as concessionárias da Califórnia do Sul instalaram pelo menos 100 megawatts de capacidade de ESS nos últimos anos, energia suficiente para dezenas de milhares de casas durante horas se for necessário.
“Ter algo que para nós era um tipo de tecnologia do futuro que vem de repente salvar a situação tão rapidamente – sim, para mim é um grande êxito,” disse John Zahuranick, presidente da AES Energy Storage, a um jornal pouco tempo depois de o projeto ter sido completado, uma tarefa que levou apenas seis meses.
Apesar dos êxitos, a proliferação de milhares de grandes caixas energizadas em todo o país - incluindo muitas em edifícios onde pessoas vivem e trabalham – não é isenta de riscos. Identificar esses riscos e as formas de lidar com eles tem sido um enfoque importante para a NFPA e outras organizações de segurança e pesquisa durante os últimos anos.
Um eixo central desses esforços foi o impulso para criar a NFPA 855, Instalação de Sistemas Estacionários de Armazenamento de Energia. O desenvolvimento da norma inclui orientações para um amplo leque de tipos de baterias e químicas abordando questões problemáticas como a instalação, a ventilação, a manutenção, a operação, a retirada de serviço e a prevenção de incêndios. A versão preliminar inclui também um anexo sobre melhores práticas para os bombeiros assim como um panorama dos riscos dos sistemas. A primeira edição da NFPA 855 poderia ser publicada já em 2019.
Essa orientação é muito necessária para as pessoas que têm a tarefa de regulamentar e responder a emergências envolvendo ESS, disse Howard Hopper, engenheiro de proteção contra incêndio e diretor de programa do UL que esteve envolvido com a NFPA, o International Code Council e a International Association of Fire Chiefs lidando com normas sobre ESS.
“Á medida que vemos mais instalações de ESS em grande escala, existe uma preocupação das autoridades competentes (ACs) quanto à falta de proteção nos requisitos herdados do código de incêndio,” ele disse ao NFPA Journal. “Eles nos perguntam como podem proteger adequadamente esses sistemas se os códigos que estão aplicando não incluem nada que lide com esses riscos. Quando eles ouvem notícias sobre incêndios que envolvem baterias de íon-litio eles pensam, ‘bem, o que acontece com essa grande instalação na minha jurisdição?’”
Os temas e a educação sobre ESS ocupam um lugar importante na Conference & Expo da NFPA, realizada em junho 2018 em Las Vegas, incluindo o lançamento dum curso de formação atualizado da NFPA sobre ESS concebido para os bombeiros.
Proliferação de Energia
As instalações de ESS são cada vez mais comuns em todo o mundo à medida que as concessionárias de energia elétrica, as empresas e até muitos consumidores liberam o potencial da tecnologia para ajudar a controlar os custos da energia e aumentar a eficiência. Em conseqüência disso, a capacidade de armazenamento de energia em todo o mundo disparou nos últimos anos e não mostra sinais de desaceleração. De acordo com um relatório recente do Bloomberg New Energy Finance, se espera que a capacidade de armazenamento de energia se duplique seis vezes nos próximos doze anos, passando de menos de cinco gigawatts-hora em 2016 para os 300 gigawatts-hora previstos para 2030. O mercado dos ESS nos Estados Unidos projeta a multiplicação por 12 do número de instalações de ESS até 2022, de acordo com a GTM Research.
Enquanto as maiores baterias fazem manchetes - o recorde da maior bateria de íon-litio do mundo foi batido quatro vezes o ano passado - a grande maioria dos ESS instalados se integram silenciosamente na paisagem, escondidos em caixas banais fora dos complexos comerciais ou residenciais. Cada vez mais, estão guardados no interior de edifícios de apartamentos, estacionamentos, sobre os telhados, em centros comerciais e locais de trabalho. Outros, como as baterias da AES em São Diego, ficam zumbindo na escuridão nos complexos industriais, prontos a fornecer energia quando as outras fontes falharem ou sofrerem uma pressão excessiva.
Tudo se resume a “muita nova tecnologia instalada em muitos lugares onde tradicionalmente não havia baterias,” disse Hopper, membro do comitê técnico da 855.
Do lado do produto, o programa de pesquisa sobre baterias do UL garante que praticamente todos os ESS disponíveis comercialmente cumpram os requisitos mínimos de segurança, mas “você deve olhar também para os riscos e as exposições no mundo real” onde estão instalados, disse Hopper. “Se você tiver um grande ESS de baterias de íon-litio numa estação eólica na zona rural, os cenários de proteção e exposição serão diferentes dos que teria com a mesma bateria colocada numa zona urbana ou no quarto andar dum edifício ocupado.”
Entender as numerosas variáveis dos riscos envolvidos para uma instalação específica - tipo, tamanho, quantidade, aplicação e localização do ESS – e tentar limitar esses riscos é o principal objetivo da NFPA 855. Mas não foi fácil.
O caráter relativamente novo dos ESS, associado ao número crescente de locais e aplicações onde os sistemas são usados, significa que o comitê dispõe de poucos dados para a consulta. Por isso, orientações de segurança essenciais como o espaçamento das baterias, os tamanhos e quantidades máximas permissíveis de baterias num quarto, e até que tipo de sistema de supressão poderá apagar adequadamente um incêndio de ESS ainda são conjeturas.
“Devido à essas incertezas tivemos de formular requisitos bastantes conservadores,” disse Hopper. “Mas também por causa de todas essas incógnitas, o código diz que se você realiza testes em grande escala e mostra que é seguro aumentar tamanhos e quantidades, ou diminuir o espaçamento, os funcionários responsáveis pelos códigos podem suavizar esses requisitos.”
Enquanto a pesquisa sobre ESS continua, a realidade é que nada parece ficar igual por muito tempo no mundo dos ESS. Os laboratórios em todo o mundo estão realizando investimentos importantes na fabricação de baterias mais eficientes por uma fração do custo, e o livre mercado continua a inventar novas formas de usá-las. Continuam a surgir novas químicas e aplicações das baterias, trazendo com elas mais incógnitas.
Em alguns países, por exemplo, os proprietários de veículos elétricos (EV, da sigla em inglês) usam cada vez mais as baterias dos seus carros para alimentar suas casas quando os veículos não estão em uso. Em outros casos, baterias EV velhas e degradadas, que já não servem para circular, são recicladas para uso doméstico, fornecendo energia auxiliar e uma forma de reduzir o pico de demanda - a prática de poupança que consiste em passar à alimentação por bateria quando os preços da eletricidade fornecida pela concessionária disparam, e recarregar as baterias durante as horas de baixa demanda quando os preços são mais baixos. Alguns acreditam que, à medida que os ESS para consumo doméstico crescem junto com a geração de energia solar, os bairros poderão formar em breve suas próprias redes elétricas independentes auto-sustentadas separadas das tradicionais concessionárias centralizadas. Os especialistas perguntam como esse tipo de desenvolvimento pode afetar a regulamentação e a proteção contra incêndio.
Uma proposta ainda mais futurista de Uber prevê o lançamento duma frota de aeronaves elétricas, que seriam carregadas por grandes sistemas ESS colocados nos telhados da cidade. Espera-se que os testes beta do programa comecem em Dallas, Los Angeles e Dubai em 2020. Algumas pessoas até imaginam um futuro onde carregadores elétricos sem fio serão construídos nas rodovias públicas para carregar automaticamente os veículos elétricos que passam.
“Falamos muito nesse tema em nossas reuniões sobre códigos: como os códigos lidarão com tecnologia e usos que ainda não vimos?” disse Hopper. “É um verdadeiro problema.”
Tradicionalmente, uma nova tecnologia omitida num código ou norma não fica regulamentada e por isso as ACs terão pouco ou nada para atuar. O comitê da NFPA 855, contudo, adotou uma abordagem diferente, propondo limites estritos na norma para as novas tecnologias a não ser que os resultados dos testes de incêndio em grande escala confirmem que são seguras.
Como seria de esperar com qualquer nova tecnologia, a primeira versão da NFPA 855 mereceu uma atenção significativa quando foi submetida à contribuição pública o ano passado. O comitê técnico recebeu mais de 500 contribuições públicas das partes interessadas, muitas de concessionárias de energia elétrica que em geral não tem muito interesse na regulamentação. Outros comentadores receavam que as restrições do tamanho e espaçamento dos ESS situados em locais fechados tornassem proibitivo o custo das instalações e atrasassem a adoção dos ESS pelas empresas.
Prevê-se que a primeira versão da NFPA 855 seja publicada no início de maio e os comentários da segunda versão deverão ser submetidos ao comitê até o dia 12 de julho.
Preocupações dos socorristas
Enquanto as ACs esperam ansiosamente mais orientações, os bombeiros colocam suas próprias perguntas, de acordo com Ron Butler, ex-bombeiro de Detroit e presidente da Energy Storage Safety Products International, uma empresa de consultoria sobre segurança para a indústria dos ESS.
“Os bombeiros sabem muito sobre muitas coisas, mas não somos especialistas em ESS,” disse Butler durante uma capacitação sobre ESS, dirigida a um grupo de oficiais do corpo de bombeiros de Boston, que realizou recentemente na sede da NFPA. “Desde o ponto de vista dos bombeiros precisamos estar bem preparados em relação ao tema.”
Assistindo à aula de Butler, os motivos do mal-estar ficaram rapidamente evidentes: os ESS são complexos, mudam rapidamente e ainda apresentam muitas incógnitas quanto à proteção contra incêndio. Quando um oficial de bombeiros de Boston perguntou à Butler como seus bombeiros deveriam apagar um incêndio de ESS, a resposta foi “muitíssima água” – a não ser que você esteja lidando com uma bateria de sódio-enxofre, não tão comum, que “reage violentamente com a água.”
Outro oficial queria saber quais são os sistemas de supressão de incêndio requeridos para locais que abrigam ESS. “De momento, não existem de fato orientações sólidas,” respondeu Butler. “Ainda estamos escrevendo a norma, então isso varia dum estado a outro e pode depender do inspetor de incêndio”.
Por outro lado, a informação sobre o conjunto completo de gases liberados por uma bateria incendiada e a toxicidade dos vapores não está clara. Em algumas baterias, esses gases são também inflamáveis em certas concentrações e na presença duma fonte de ignição uma explosão é possível. Em outros tipos de sistemas, como as baterias de fluxo, que utilizam líquidos circulando chamados eletrólitos para armazenar energia, o incêndio não é tão preocupante como a toxicidade duma eventual fuga de eletrólito, que requer um tipo diferente de resposta.
Outra dificuldade para os bombeiros é a tendência das baterias de íon-litio para reativar o fogo, como as velas mágicas de aniversário, muito tempo depois de terem sido apagadas. Se isso é assim, como faz um bombeiro para saber quando é seguro entregar um edifício ao proprietário depois dum incêndio? Mais um assunto que não foi plenamente resolvido.
Um assunto relacionado (para o qual a NFPA tem também um curso de formação) diz respeito aos veículos elétricos – um tema de preocupação importante para os bombeiros. Em março, na localidade de Mountain View na Califórnia, o corpo de bombeiros local respondeu a uma colisão envolvendo um Tesla Modelo X onde a bateria quebrada do carro estava incendiada e havia células da bateria espalhadas pela autoestrada. A cena comportava simultaneamente um incêndio, um incidente com produtos perigosos e um risco de eletrocussão. “Já que a bateria estava exposta, não sabíamos si era seguro para nós mover o veículo,” disse Art Montiel, oficial do corpo de bombeiros de Mountain View a um canal de televisão local. A colisão obrigou a fechar três faixas de autoestrada por seis horas.
Devido às incertezas e ao caráter relativamente novo da tecnologia, muitos corpos de bombeiros não têm ainda procedimentos operacionais padronizados, planos prévios e programas de treinamento para emergências que envolvem ESS. Padronizar a instalação dos ESS e os elementos de segurança que devem estar presentes – o objetivo principal da NFPA 855 – vai trazer mais coerência ao processo e ajudar os bombeiros a desenvolver procedimentos e planos prévios.
Enquanto o desenvolvimento da NFPA 855 continua, a tarefa que os bombeiros enfrentam com os ESS ainda é enorme. Atualmente, existem nove tipos diferentes de ESS incluídos na versão preliminar da NFPA 855 e muitos desses têm várias subcategorias com diferentes propriedades e riscos únicos. Dentro de alguns anos poderia haver muito mais. Os bombeiros afirmam que algo deve ceder.
“Não é razoável esperar que os bombeiros conheçam cada química de bateria para cada bateria que se encontra em cada edifício,” disse Butler à classe dos oficiais de bombeiros de Boston. “Os bombeiros têm um universo de responsabilidades e garantir a segurança dos ESS não pode depender apenas de nós – deve ser um esforço coletivo.”
Os parceiros essenciais para o êxito incluem proprietários de edifícios, trabalhadores da manutenção, gerentes de instalações e outros, disse Butler, que deveriam ser todos treinados, da mesma forma que os bombeiros, sobre as químicas, os riscos e os aspetos específicos das baterias presentes em suas instalações. “Precisamos da ajuda de todos,” ele disse. “Precisamos trabalhar juntos.”
Jesse Roman é editor para o NFPA Journal.
Preencher as lacunas
Um conjunto de projetos de pesquisa busca respostas às perguntas relativas aos sistemas de armazenamento de energia.
Uma pesquisa está em curso para preencher algumas das lacunas no conhecimento relacionado aos sistemas de armazenamento de energia (ESS). Esta primavera, o braço de pesquisa da NFPA, a Fundação de Pesquisa para a Proteção Contra Incêndio (FPRF, da sigla em inglês), lançou um projeto para estudar a efetividade de vários sistemas de supressão em testes de incêndio envolvendo grandes sistemas ESS de íon-litio. Os pesquisadores esperam que os resultados permitam estabelecer requisitos mínimos para o projeto e a densidade dos sistemas de sprinklers que proporcionem uma proteção efetiva dos ESS de íon-litio, atualmente o tipo dominante de baterias usadas em todo o mundo.
A importância do projeto ficou clara em novembro passado quando uma ba
eria de íon-litio de 1 megawatt se incendiou na Bélgica, projetando no ar colunas de fumaça branca, apesar de o sistema estar totalmente equipado com supressão de incêndio. Um vídeo do evento mostra as chamas, que o sistema de supressão não pode controlar, saindo da caixa.
Outro projeto da FPRF, lançado também na primavera, é uma iniciativa de dois anos para ajudar os bombeiros a desenvolver orientações operacionais padronizadas para responder às emergências que envolvem baterias de íon-litio. Utilizando dados coletados através duma análise da documentação e dos testes de incêndio, os pesquisadores esperam construir um simulador de incêndio de ESS que reproduza cenários de incêndio comuns de ESS. O simulador será então testado no terreno pelos corpos de bombeiros para avaliar a efetividade de diferentes táticas de combate a incêndio com a esperança de usar finalmente o aprendido para desenvolver orientações operacionais padronizadas. O simulador inicial poderia eventualmente ser replicado, permitindo sua utilização por corpos de bombeiros em todo o país na capacitação prática sobre ESS.
Houve resultados positivos também em outras frentes. Em 2017, o UL realizou extensos testes de incêndio sobre um temido fenômeno que afeta as baterias chamado avalanche térmica, onde o calor produzido por um incêndio ou uma célula de bateria danificada causa uma reação térmica no interior da célula aumentando ainda mais a temperatura e produzindo mais reações químicas que passam em cascata duma célula a outra. A pesquisa levou à elaboração da UL 9540a, Método de Teste Padronizado para Avaliação da Propagação do Fogo em Avalanche Térmica em Sistemas de Baterias de Armazenamento de Energia. Os métodos de testes padronizados permitirão que os engenheiros realizem testes de ESS mais precisos numa série de configurações – como diferentes quantidades, tamanhos, químicas, espaçamento de baterias – para descobrir o que poderia acontecer no pior cenário quando uma ou mais baterias sofrerem uma avalanche térmica. Com a realização de mais experimentos desse tipo, os funcionários responsáveis pelos códigos terão uma idéia mais clara dos riscos potenciais de vários cenários de ESS e poderão adaptar a NFPA 855 de acordo com os resultados.