Acontece muitas vezes no mundo da segurança pública que um único momento trágico contribua mais para cristalizar um problema que qualquer quantidade de discussões.
Para a segurança dos caminhões de comida, esse momento chegou na manhã do dia um de julho 2014, no bairro de Feltonville, em Filadélfia. O gás proveniente da fuga duma garrafa de propano no caminhão de comida La ParrilladaChapina se incendiou, causando uma explosão que lançou uma bola de fogo a 200 pés de altura, sacudiu edifícios vizinhos e projetou a garrafa de propano a uma distância de 95 pés num pátio vizinho. Os operadores do caminhão Olga Galdamez, de 42 anos e sua filha, Jaylin Landaverry-Galdamez, de 17 anos, sofreram queimaduras de terceiro grau e morreram semanas mais tarde. Dez pessoas mais sofreram ferimentos na explosão, alguns graves.
Não era a primeira vez que um caminhão de comida explodia em público, mas houve uma diferencia essencial – o incidente foi gravado num vídeo por uma câmara de segurança vizinha. O vídeo, chocante, foi difundido rapidamente na internet e em todo o país a mídia começou a fazer as mesmas perguntas: “Os caminhões de comida são seguros”? e “isso poderia acontecer aqui”?
R.T. Leicht, especialista de proteção contra incêndio principal do estado de Delaware, estava de férias na praia com a família no momento da explosão. Naquela época Leicht era também presidente do comitê técnico da NFPA 96, Controle de Ventilação e Proteção contra Incêndios das Operações Comerciais de Cozinha, e ele soube da explosão um dia mais tarde, quando Steven Sawyer, especialista sênior de combate ao incêndio da NFPA, enviou-lhe um e-mail para perguntar se o comitê, à luz da explosão de Filadélfia, deveria voltar a considerar uma norma que tinha sido proposta anteriormente sobre a segurança dos caminhões de comida.
“Comecei imediatamente a buscar em Google e vi a explosão na tela do meu computador,” disse Leicht, que era também ex-presidente da Associação Internacional de Inspetores de Incêndio (IFMA, da sigla em inglês.) “O incidente saiu nos noticiários e as pessoas começaram a falar... antes disso, parece que ninguém tinha muito interesse no problema.”
Jacqueline Wilmot, pessoa de contato para a NFPA 96 e natural de Filadélfia, disse que após o incidente de La ParrilladaChapina já não era possível ignorar o problema da segurança dos caminhões de comida. “Todos ficaram mais preocupados, porque podiam ver no vídeo quão prejudicial pode ser esse tipo de evento.”
Pouco tempo depois do incidente, a IFMA convocou um grupo de trabalho para preparar uma proposta dum novo capítulo da NFPA 96 tratando especificamente da segurança dos caminhões de comida. O novo texto foi submetido à NFPA em dezembro passado e o comitê técnico da NFPA 96 o analisará em maio para sua possível inclusão na edição 2017 da norma.
“Atualmente não existe uma norma nacional que lide especificamente com essas questões,” disse Leicht. “Cada cidade faz aquilo que lhe parece melhor. Alguns até dizem que não é um problema, mas ocorreram muitos incidentes, só que a maior parte não aparece nos noticiários.”
Dores de crescimento
Em todo o país, a popularidade dos caminhões de comida está aumentando. Matthew Geller, o fundador e presidente da National Food Truck Association, baseado em Santa Monica, estima que existem pelo menos 117000 caminhões de comida operando nos Estados Unidos, sua popularidade crescendo junto com a cultura “foodie” que floresce no país. A recessão também contribuiu para o fenômeno, disse Geller, porque os chefs precisam buscar alternativas mais baratas aos restaurantes tradicionais para lançar sua atividade e os consumidores procuram soluções mais acessíveis para jantar fora de casa. De acordo com IBISWorld, uma empresa de análise de negócios, as receitas da indústria dos caminhões de comida cresceu em média 9.3% ao ano entre 2010 e 2015, para alcançar os 857 milhões de dólares o ano passado.
A regulamentação tem sido uma dor de cabeça para a indústria, diz Geller. Devido ao fato de que as regras são concebidas e aplicadas a nível local, existem praticamente tantas regulamentações diferentes que governam a indústria como caminhões de comida na rua. Os operadores dos caminhões enfrentam uma coleção de regras sobre como preparar e servir comida, onde estacionar, quais autorizações são necessárias, a freqüência das inspeções – e tudo isso pode mudar no momento em que atravessam uma fronteira municipal.
As regulamentações de proteção contra incêndio não são diferentes; as regras variam desde processos de emissão de licenças muito completos até a ausência total de supervisão ou regras. Em Chicago, além de apresentar planos de proteção contra incêndio e ter de passar por uma inspeção demorada, todos os proprietários de caminhões de comida devem assistir a uma aula sobre segurança contra incêndio. Na outra ponta do espetro, no estado de Indiana, as leis do estado proíbem que os corpos de bombeiros realizem inspeções aos caminhões de comida, porque são considerados veículos, disse o Inspetor de Incêndio de Indianápolis, Chefe Courtney Gordon, após a explosão em Filadélfia.
Às vezes a falta de definição de regulamentos provoca fricções entre as cidades e os operadores, disse Geller.
“Tenho situações onde uma cidade fica nervosa sobre a segurança contra incêndio e por isso pensa que pode dizer aos caminhões de comida como as coisas devem ser feitas sem ter nada escrito num código, o que para mim não funciona.” Ele disse. “Os códigos são importantes. Se a indústria não souber o que fazer e uma cidade não tiver nem código nem certeza quanto aos procedimentos, o cumprimento será impossível.”
Geller, que é diplomado em direito, protesta muitas vezes contra aquilo que descreve como regras desnecessárias e o excesso de regulamentação, mas ele vê a proteção contra incêndio como uma exceção.
“Não me sinto à vontade com as normas nacionais porque prejudicam muitas vezes a iniciativa regional,” ele disse. “Mas caso um grupo de profissionais do combate ao incêndio se junte para produzir algo inteligente, creio que esta é uma boa oportunidade para fazê-lo. Pelo menos poderia trazer algo de coerência à indústria e quando há coerência há segurança. Um caminhão de comida que explode em Minnesota nos afeta aqui na Califórnia.”
O problema
A maioria dos chefs dos caminhões de comida utiliza gás ou eletricidade. Embora pequenos incêndios se produzam no fogão, no forno ou na frigideira, as fontes de combustível têm o maior potencial para causar destruição, ferimentos e mortes. Uma garrafa de propano comum de 20 galões tem a mesma capacidade explosiva que 170 cartuchos de dinamite, disse Leicht. Alguns caminhões em jurisdições que não possuem regulamentação levam mais de 100 galões de propano em garrafas. Os geradores a gás também podem ser perigosos.
Devido ao fato que o gás propano é mais pesado que o ar, uma perda não detectada pode causar a formação de poças em buracos e fendas dentro e fora do caminhão.
“Se você estiver cozinhando todo o dia com muitos cheiros diferentes, possivelmente não notará uma perda e não se dará conta que está parado numa poça de propano,” disse Leicht. Nessa situação, uma fagulha do fogão ou do forno poderá causar um desastre. Isso foi o que aconteceu na explosão de Filadélfia, de acordo com a conclusão da investigação do inspetor de incêndios local.
Embora as explosões como a de Filadélfia sejam raras, não são sem precedentes. Em 2011, dois trabalhadores sofreram queimaduras quando um caminhão de comida explodiu na Cidade de Nova Iorque após um acidente de transito. Em 2012, uma garrafa de propano explodiu num caminhão de comida em Canadá, causando danos por 30 000 dólares. Em 2014, três pessoas ficaram feridas em Fresno, California, quando um caminhão de comida explodiu durante um jogo de futebol numa escola secundaria. Em março, um caminhão de comida explodiu numa passagem em Lakeview, Minnesota, causando danos a 20 casas. A explosão ouviu-se a seis milhas de distância, de acordo com os noticiários.
Um relatório da NFPA publicado em fevereiro 2014, mostra que entre 2007 e 2011 houve em média 540 incêndios em veículos a cada ano onde o propano foi o primeiro material em incendiar-se. Esses incêndios causaram três mortes e oito milhões de danos à propriedade anualmente. Não há forma de saber quantos desses incêndios ocorreram em caminhões de comidas, mas fica claro que o perigo potencial não deve ser tomado levianamente.
Encontrar soluções
O Corpo de Bombeiros de Chicago conhecia bem os perigos potenciais quando começou a preparar regulamentos abrangentes de proteção contra incêndio para os caminhões de comida quatro anos atrás. Antes de 2012, quando foi adotada uma nova postura municipal, a cozinha em caminhões e pequenos carros não era permitida em Chicago; a comida devia ser preparada numa cozinha comercial fora do lugar e ser transportada até os caminhões e carros. Como resultado, o departamento de saúde realizava todas as inspeções e autorizações dos carros de comida na cidade. Quando ficou claro que a aprovação da nova lei permitindo a cozinha em caminhões de comida era provável, os bombeiros de Chicago lutaram para preparar um plano que garantisse a segurança. Mas não havia muita informação útil, de acordo com os bombeiros.
“Durante nossa primeira semana de pesquisa sobre o assunto, ficou claro que a NFPA não tinha nada sobre essa indústria, que crescia rapidamente,” diz Richard Ford II, o vice-diretor de prevenção de incêndios do Corpo de Bombeiros de Chicago. “Então falei com meus colegas desde Nova Iorque até Califórnia, da Florida a Washington, e ninguém parecia ter boas regras sobre a segurança dos caminhões de comida. Isso não nos pareceu aceitável.”
O Departamento formou um comitê e elaborou aquilo que é considerado como a regulamentação de incêndio mais abrangente dedicada à segurança dos caminhões de comida no país. Todas as instalações móveis que vendem comida em Chicago e que incluem um gerador, gás propano, gás natural comprimido e/ou coifas de supressão de incêndios devem obter uma licença de segurança contra incêndio. Para esse fim, os operadores de caminhões de comida devem submeter às autoridades municipais desenhos detalhados do sistema de supressão de incêndio do caminhão; passar uma inspeção de incêndio; ter sempre no local uma pessoa treinada pela cidade de Chicago no manuseio e troca de garrafas de propano; que todos os empregados atendam aulas sobre segurança contra incêndio; manter um detector de gás combustível para leituras diárias no caminhão; cumprir os requisitos contidos no documento “Mobile Food Vehicle Safety Specifications and Practices”, que foram desenvolvidos em grande parte a partir do NFPA 58, Código do Gás de Petróleo Liquefeito. Cada caminhão deve também ser equipado dum GPS com um dispositivo de rastreio para que os bombeiros possam localizar rapidamente um caminhão e responder em caso de emergência.
As inspeções sem aviso prévio não são raras, disse Ford. O Corpo de Bombeiros está também analisando a possibilidade de requerer que os caminhões levem dispositivos de detecção de gás para verificar se há perdas de gás cada vez que o caminhão muda de local.
Algumas dessas regras irritam os operadores de caminhões de comida de Chicago, especialmente o requisito de GPS e uma regra que não tem relação com o incêndio que os obriga a estacionar a uma distância mínima de 200 pés dum restaurante convencional. Alguns se queixam que certas regras contra incêndio, como requerer canos rígidos de alimentação de gás em lugar das mangueiras de borracha mais baratas, acrescentam custos e cortam bastante seus já reduzidos lucros. Mas Ford não pede desculpas.
“Aqui se trata só de segurança,” ele disse. “Não estamos tentando prejudicar a indústria. Queremos apenas segurança para os proprietários, os operadores e o público.”
A falta duma norma nacional de consenso levou outras cidades a olhar para Chicago a procura de orientações para o desenvolvimento de regras sobre os caminhões de comida. Ford disse que as municipalidades de todo o país chamaram para pedir cópias do Fire Safety Permit Consultation Package de Chicago, que ele entrega de bom grado junto com uma proposta de assessoria. Essas chamadas aumentaram durante os últimos dois anos e já chegou o momento para o envolvimento da NFPA, disse Ford.
“Precisamos de uma norma para todo o país, algo que forneça o nível básico de segurança em todo o país,” ele disse.
Leicht, que é ainda membro do comitê técnico do NFPA 96, concorda com a idéia duma norma nacional de consenso da NFPA sobre os caminhões de comida que contribuiria muito para a diminuição do número de comunidades que não têm regulamentos contra incêndio de nenhum tipo. Isso se deve em parte ao fato que muitas comunidades não possuem internamente a perícia ou os conhecimentos necessários para criar regulamentos para licenciamento no âmbito da prevenção de incêndios, ele disse.
“As comunidades adotariam a norma porque existe – eles não têm de reinventar a roda, porque já foi escrita,” disse Leicht, falando com base na experiência. “Atualmente não temos uma norma que trate dos caminhões de comida no Delaware, mas se houvesse uma norma nacional lidando com isso, seria provavelmente adotada.”
Jesse Roman é redator permanente do NFPA Journal. Ele pode ser contatado em